Entrevista Goya Lope

Entrevista Goya Lopes

15:13




"A moda afro-brasileira tem uma necessidade de reconhecimento"

Goya Lopes é artista plástica, designer, estilista e empresária e integra o Colegiado Setorial de Moda do MinC. 

 Depois de ter pensando em ser arqueóloga, você passou por diversas áreas ligadas às artes, até tornar-se estilista. Como foi esse processo?
Na realidade, sempre busquei a cultura afro. Pensei em estudar arqueologia quando tive aula de História da Arte na Escola de Belas Artes, mas, em 1976, um professor de Estética aconselhou-me: “Por que você não vai fazer a profissão do futuro? Design vai ser a profissão do futuro!”. Fiquei curiosa e escolhi design. Ganhei uma bolsa de estudos que o governo italiano dava para as pessoas que tinham terminado cursos ligados a artes e fui para a Itália. Só lá que fui descobrir o que era design. De cara, os professores disseram: “Mais uma que é artista plástica e que vem da bolsa do design”. Era uma coisa realmente muito nova.
Paralelamente, comecei a perceber que, com a globalização, o “étnico” estava cada vez mais forte. E, cada vez mais, percebia que o Brasil era inspiração, mas nós copiávamos. No início dos anos de 1980, quando voltei ao país, tentei criar desenhos dentro da linguagem afros, mas, naquela época, era muito difícil, não havia uma visão de que existia uma moda afro-brasileira, havia apenas os elementos africanos e uma moda trazida da África. Então, decidi eu mesma ser a empreendedora do meu projeto de decoração e moda afro - brasileira.
Iniciei vendendo para terceiros e depois achei que era melhor abrir uma loja própria num ponto onde eu poderia dar mais visibilidade ao trabalho. Escolhi o Pelourinho, e foi uma espécie de laboratório, pois pude interagir com o mundo inteiro. Em conseqüência disso, apareceram condições para eu desenvolver produtos e construir uma linguagem com uma personalidade própria.
A construção do produto não passa só pelo criador. Também participam o cliente, que vai responder de maneira positiva ou não, e a mídia que vai fazer a crítica. É essa tríade. A produção depende principalmente da crítica positiva da mídia, porque isso é o que tem alavancado. A falta dela tem impedido o crescimento de muita gente boa no mercado.

Quais as características que moda brasileira deve à sua matriz africana?
Acho que as cores fortes. A cor já foi incorporada na moda brasileira. Existe também um traço bem marcante do grafismo e da arte africana que já está incorporado. Há uma tendência na moda de ligar-se ao étnico, e quando se fala em étnico, o que vem em primeiro lugar é o afro. Assim, esses traços vão sendo absorvidos. Hoje, muitas marcas já absorvem também um traço mais solto, um trabalho de textura, a questão de figura e fundo. Vejo muito isso no traço das máscaras, no geométrico, nos carimbos africanos.

Em relação à identidade da moda afro-brasileira, há outras especificidades que
]podem ser destacadas?
Fora a questão da cor e da religiosidade, que as coleções estão também sempre trazendo, há a questão do próprio vestir, do solto, das roupas largas. Os bubus, as batas foram absorvidas no dia a dia. Aqui na Bahia, o abadá se tornou uma marca registrada. Tudo isso caiu no gosto popular e leva as pessoas a quererem uma bata ou uma camisa de uma linha mais solta. O afro-brasileiro, na realidade, é uma junção de brasilidade tão forte que algumas coisas são incorporadas, mas nós não identificamos.


A moda brasileira adquiriu grande reconhecimento nos últimos anos. Há reconhecimento do valor da moda afro-brasileira?
A moda afro-brasileira não é vista como uma moda cultural. Ela precisa de um reconhecimento de fato do que ela é. Hoje, temos um grupo de trabalho e estamos estudando sobre como apresentar para a sociedade que essa moda tem um conteúdo cultural e um potencial de imagem muito grande. É preciso haver uma crítica positiva da mídia. Essa moda é muito promissora, mas hoje ela não está sendo vista dessa maneira.
Ela tem uma alegria de vestir, uma alegria nas cores, que é um jeito dessa brasilidade, um jeito principalmente baiano de ser. É a imagem do brasileiro para nós mesmos e lá fora também. A moda afro-brasileira e esses elementos que a compõem, a decoração que trabalha com a simbologia afro-brasileira, por exemplo, têm uma necessidade de reconhecimento. Ela pode vir a ser vista como um dos “Brasis” tanto em voga lá fora.
A que se deve essa falta de reconhecimento? O que pode ser feito?
Sou membro do colegiado setorial de moda do Minc. Há mais ou menos três anos, formou-se um GT de moda e, hoje, temos esse colegiado encerrando a primeira gestão. Acredito que a própria sociedade civil, junto com as instituições, possa ver a importância de se fazer o “pensamento” da moda afro-brasileira. Existe pouca literatura, existe pouco interesse de estudiosos que possam escrever sobre a trajetória dessa moda, que tem uma variedade muito grande. Não é só a moda do cotidiano, como eu faço, mas existe também a religiosa, o figurinismo, existem várias possibilidades de adereços e de jeitos de vestir. Como é uma modalidade que tem um potencial comercial ainda não reconhecido, esse grupo tem se preocupado em buscar esse reconhecimento junto aos órgãos públicos e junto ao MinC. Queremos criar fazer seminários, informar a sociedade que essa moda existe e que não é só direcionada a um público específico. É preciso mostrar que ela tem um potencial dentro de uma linguagem contemporânea. Isso é muito importante para alavancar qualquer possibilidade de uma moda dita étnica ser inserida no mercado.
Às vezes, as pessoas misturam tudo e, nessa mistura, perde-se todo o potencial dessa moda. A pessoa deixa de ver o que é de fato figurino, o que é de fato religioso, o que é de fato para eventos e termina colocando tudo no mesmo nível. Temos que mostrar que são níveis ligados às possibilidades de respostas a determinadas necessidades, ou seja, não é tudo a mesma coisa Essa é a nossa proposta de trabalho, para que a moda afro-brasileira possa ser inserida nesse contexto contemporâneo de moda.
Por conta da escravidão, durante muito tempo a negritude esteve ligada a baixa autoestima. Hoje, isso mudou? A moda pode contribuir para a afirmação do negro na sociedade?
Já está contribuindo. O elemento principal é a estética. Os cabelos, por exemplo. Nesse ponto, evoluiu-se muito na questão da autoestima. Esse movimento começou nos anos de 1960 nos EUA e foi se expandindo.
Quando a moda afro-brasileira conseguir essa crítica positiva da mídia, a inclusão vai se dar de uma maneira natural e, com certeza, o resultado vai ser bem maior. As coisas ainda são vistas como uma necessidade de se colocar, pois, caso contrário, se estaria excluindo. 
A história foi muito cruel no sentido de que não foi dado para o negro o que foi dado para o imigrante. Essa situação realmente deixou marcas muito fortes. A moda, a arte e todo esse movimento cultural vêm como uma grande possibilidade de resgate. A moda tem um potencial de ser possível para todos.
Mas já foi dado um grande passo em relação à questão da auto-estima, principalmente com a estética da mulher. Hoje, a mulher negra, afrodescendente, se vê de outra maneira.
Como é possível agir politicamente?
Depois desses três anos fazendo uma coisa que eu nunca tinha feito, vejo que política é pensar no coletivo. E vejo a moda como uma capacidade de transmitir a todos o potencial de cada um. Essa situação deixa a própria sociedade civil com uma capacidade de interferir. Mas isso é em longo prazo, porque tem que haver uma construção da sociedade civil que só é consolidada se existe uma resposta do poder público, se as políticas governamentais reconhecerem. Não foi por acaso que houve essa mudança no Ministério da Cultura em reconhecer a moda como cultura. Mostrou-se a importância disso ao ministro, que foi convidado a visitar desfiles, acompanhar todo o processo. Daí que surgiu a necessidade de criar um setorial de moda, de tratar a moda como uma cultura nossa. A diversidade e a singularidade brasileiras que fazem com que o Brasil seja um país único com esse potencial. Há um potencial de imagem muito forte. 
Você instalou suas lojas no Pelourinho e dentro do aeroporto. Ambos são locais bastante freqüentados por turistas e, muitas vezes, por turistas de classes sociais mais elevadas. Esse público tem consumido a moda afro-brasileira?
Quando escolhi o pelourinho como laboratório, era exatamente para interagir com o turista do mundo inteiro. O meu projeto de design de moda e decoração afro-brasileira visava construir um padrão com personalidade própria e que as pessoas identificassem. Então, tinha que interagir de uma maneira intensa com o mundo inteiro. Por isso, fui, inicialmente, ao Pelourinho, e estou lá há 24 anos. Há 24 anos, o público que freqüentava era principalmente da classe A. Quem ia conhecer lugares como a Bahia eram pessoas que buscavam uma cultura; hoje, as pessoas saem em busca do que está na moda. O poder de viagem também se tornou muito maior.
Esse público contribuiu para a construção de um padrão. Uma das coisas que eu escutei muito de pessoas sofisticadas, pessoas de classe A, mas também de intelectuais e de pessoas simples foi: “Em seus produtos, não deixe de dar essa sensação de coisa feita à mão”. Inicialmente, as pessoas tinham a impressão de que meu trabalho era constituído de peças únicas, porque ele tem esse apelo de mostrar que é um trabalho manual. Mas não é, ele é feito em série. Trabalhei com o carimbo, com molde vazado, para criar essa sensação de peça única. Isso é muito importante para uma classe A, que gosta de ter um produto que dê essa sensação ter sido feito à mão, mas com acabamento, com design, com estilo. Até hoje, temos clientes que sempre voltam e dizem para mantermos essa sensação de peça única, essa sensação de que aquele é um produto que vem de uma cultura, que fala da questão africana. Eu me considero uma contadora de histórias através da estamparia.
Esse produto tem características universais, porque está dentro de um padrão capaz de atrair pessoas de qualquer classe. É um produto que conta uma história, que tem algo além da funcionalidade e da estética. Ele apresenta ao afrodescendente a sua história, a sua autoestima mais aflorada possível, e, para aquele que não é afrodescendente, mas é uma pessoa que respeita a cultura, apresenta os elementos da simbologia afro-brasileira, que é muito elegante. É uma arte que foi a referência para a arte moderna, sabemos que muitos foram beber nessa fonte.
Resta ao designer fazer esse envolvimento, mesmo que de uma maneira simples, no espaço, na maneira de colocar, assim as pessoas vão saber que aquele produto não é apenas um produto, ele tem uma história para contar, é um projeto de vida que a designer construiu com amor e trabalhando com a sua própria autoestima. Isso faz com que a pessoa da classe A com sensibilidade veja o produto como algo sofisticado.
Temos a linha Didara, que é o afro-brasileiro dentro da sua simbologia e da sua história, e a linha Goya Lopes que é uma linha que está mais dentro da tendência brasileira. Faz pouco tempo que ela tomou forma e está chegando com um elemento do vestuário feminino que a classe A gosta muito, o caftã, que você usa nas horas de lazer, nas horas em que está recebendo visitas. Então, existe potencial, e é a partir desse potencial que o GT da moda afro-brasileira vê a possibilidade de entrar de maneira tranqüila, pela porta da frente, na moda brasileira.
Apesar de todas essas referências à história, você também utiliza uma linguagem contemporânea. Como se dá essa relação entre tradicional e contemporâneo em seu trabalho?
Quando voltei a Salvador e fui buscar uma técnica manual, eu queria fazer uma inovação. Quer dizer, dentro dessa técnica, a intenção era buscar no manual do rolinho, da máscara, do carimbo, uma modalidade contemporânea. Eu estava trazendo toda a simbologia afro, não importando se ela era do Norte ou do Sul, não importando de que nacionalidade ou de que etnia ela tenha sido trazida, mas sim que o traço tivesse personalidade forte. O meu traço é contemporâneo. Independentemente dos símbolos de que eu me aproprio para trazer ao trabalho, às vezes, de maneira intacta, todos identificam meu traço quando olham. Mesmo não conhecendo a coleção, eles reconhecem: “Aquele trabalho ali é da Didara, é de Goya”. A idéia do projeto era ter dentro do grafismo uma contemporaneidade, porque ali estava a minha mão. Não foi só a tradição que eu trouxe, eu trouxe a tradição, mas com o meu traço. Isso é uma coisa própria da contemporaneidade. A arte contemporânea tem conteúdo, ela contextualiza. O traço não é só o traço, cada trabalho tem uma mensagem. A coleção do amor, a coleção da árvore, a coleção da latinidade, a coleção da baianidade, cada coleção está falando de uma coisa contemporânea, do que a gente pensa dos fatos e do que a gente pensa da gente mesmo. Essa contemporaneidade está no fato de a designer, a artista ou a estilista contribuírem com a sua vivência, com o seu olhar, com a sua percepção, com a sua observação para que aquela simbologia tenha uma personalidade própria, um padrão. Mas isso não foi construído da noite para o dia, foi construído passo a passo e com consciência dessa construção. Alguns daqueles que fazem a moda afro-brasileira têm que se trabalhar para não ficar só na questão da tradição. Se quer fazer a tradição, assuma a sua tradição: “Isso é tradição, eu fico aqui e é isso”. Mas se eu quero criar dando uma contribuição, tenho que estar nesse pé de construção, nessa linha de pensamento, ou de outras linhas de pensamento, de outros olhares. Tem que ter a dinâmica que, hoje, o mundo contemporâneo pede. Pede, exige e não deixa a gente descansar.
Isso é o que sinto. Eu acho que a construção é muito o sentir. O artista cresce porque ele sente, ele vibra, ele contribui com esse movimento do seu tempo, respeitando os outros tempos, e trazendo para o seu trabalho essa contribuição.

A profecia do seu professor se realizou? Design era mesmo a profissão do futuro?
O nome dele é Romano Galeffi, um italiano que foi professor de estética da UFBA. Ele era uma pessoa de visão impar e, em 1976, conseguiu colocar na cabeça de uma recém-formada que o design era a profissão do futuro. Naquela época, não se falava, era muito distante, se falava de carro, mas, em geral, não se falava. Hoje é tudo design. Tornou-se a profissão de agora e por muito tempo ainda. Foi nessa profissão que eu cheguei a um futuro e posso chegar a outro futuro que estamos construindo. 

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